PROJETO DE VIDA

O Mais Fascinante Projeto de Vida

(Por Caio Fabio D'Araújo Filho)

Jesus dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia após dia tome a sua cruz e siga-me."
Jesus Cristo nos chama a segui-lo.
Tal convite não pode ser respondido com um mero levantar de mão em cruzadas evangelísticas. Falo como evangelista acostumado a este fenômeno: milhares de mãos se levantando, respondendo sim ao apelo de seguir Jesus. Na realidade, pode ser que o gesto seja o primeiro de uma sucessão benéfica que inclua: apertar a mão de irmãos, lavar os pés dos santos, enxugar lágrimas a aflitos, dar água e pão aos pobres, curar as feridas dos flagelados, impor as mãos sobre os doentes ou uni-las em oração e prece. Se este for o processo, então aquele gesto foi válido. No entanto, se não propiciar tal fluxo de vida e sucessão de atos, não passou de coreografia de trabalho religioso, ilusão para os servos da idolatria estatística e fantasia para os que pretendem povoar o céu a partir da graça barata.
Seguir Jesus não é ser modelado dentro do apertado terreno dos condicionamentos psicológicos, culturais e religiosos dos nossos guetos evangélicos. Entre nós a conversão é muitas vezes um fenômeno de mimetismo, não o nascer de uma nova criatura. A conversão não é, na nossa superficial e freqüentemente hipócrita cultura evangélica, a assimilação de chavões, palavras, gestos feitos, tom de voz e indumentária própria. Não tenho medo de ser julgado. O que disse está dito, pois conheço a igreja de Cristo no Brasil e sei que ela precisa ser liberta da religiosidade que por vezes Jesus odiou e reprovou Discipulado também não é apenas vida moral e social ajustada. Pagar as contas em dia, lavar o carro todo sábado, levar os filhos ao parque, sair para jantar uma vez por semana com a esposa, ser bom vizinho e ótimo profissional não é tudo sobre discipulado. Esta vida certinha ainda está dentro do ordinário. O discipulado está no nível do extraordinário.
Seguir Jesus extrapola os melhores hábitos. É ir tão mais além que desajuste os certinhos e desinstale os irremovíveis e plantados no seguro terreno da vida acomodada. Discipulado é vida para nômades. É existência para aqueles que confessam que todo país estrangeiro pode ser sua pátria e que o planeta Terra não é seu lugar de repouso, porque aspiram à Pátria Superior. Ser discípulo é ter tanto a disciplina quanto a criatividade das ondas do mar. Disciplina porque as ondas são ordenadas e têm princípios. Criatividade, porque elas existem dentro de uma dinâmica: cada onda é diferente da outra.
Neste sentido, seguir Jesus é obedecer a princípios imutáveis, mas é também ser livre como as ondas do mar. Um discípulo, ao mesmo tempo que vive obediente a Deus, descobre a pessoa dinâmica que deve ser, conforme a expressão da sua inerente potencialidade e mediante os variados dons espirituais que a graça de Deus acrescenta à vida de cada cristão.
Em razão das afirmações anteriores e de muitas outras ainda não apresentadas é que Jesus diz que o discípulo é um ser livre.
Cristo não esmaga a cana quebrada e nem apaga a torcida que fumega.
Ele não violenta o coração.
Não faz apelos emocionalmente irresistíveis. Não coage a alma humana. Não faz lavagem cerebral.
Seu convite ao discipulado começa com um "se alguém quer".
O homem deve analisar se deseja segui-lo. Ninguém é forçado a aceitar. O candidato ao discipulado tem que se sentir em liberdade, pois Jesus mostra que há opções. Todavia, a opção para fora do discipulado é morte, escravidão, gemido e náusea No discipulado há uma lei básica: a pessoa é livre para tudo, só não é livre para deixar de escolher. O candidato a ele é escravo da sua liberdade. Mas é tão livre que pode até escolher ser escravo.
Deus criou o homem não apenas com o livre arbítrio mas também com o poder de arbitrar. Por isso Jesus afirma que o discípulo tem que ser alguém que quer. Se alguém quer, é como inicia o convite.
O seguidor de Jesus deve saber o que quer, porque o discipulado sempre exige uma de-cisão. Algumas decisões não são de-cisões. No discipulado, no entanto, não raramente as tomadas de posição implicam rupturas, fraturas emocionais, psicológicas, familiares, sociais e até econômicas.
O discípulo tem que saber o que quer, porque dele é exigido que abra mão de valores, a fim de se apoderar do Reino de Deus:
"O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele campo."
Não se trata de salvação pelas obras, mas de entender e aceitar os custos da descoberta, da REVELAÇÃO. O tesouro valia mais do que o campo. Logo, quem comprou o campo, ganhou o tesouro de graça.
Assim é no Reino de Deus: a salvação (tesouro) é de graça, mas o discipulado (campo) tem um preço. Há valores a serem trocados; há um custo a ser pago.
 Isto porque o Reino dos Céus é a única realidade duradoura, e o seu valor é incalculavelmente precioso.
Por isso a pessoa realmente desejosa de receber os resultados positivos da vida no Reino dos Céus, uma vez confrontada com ele, prontamente, e cheia de alegria, fará o sacrifício que for necessário, seja a perda de amizades, bens, posição, ou inclusive da própria vida.
 Todavia deve-se saber que quando a grande alegria, que supera toda medida, toma conta da alma, ela arrebata, atinge o mais íntimo, supera a compreensão. Tudo fica pálido e sem brilho diante do brilho do Reino dos Céus. Nenhum preço parece alto demais diante desse tesouro. A entrega precipitada e irrefletida do que há de mais precioso torna-se a evidência mais clara disso. Diante do Reino entrega-se tudo porque se fica arrebatado diante da grandeza do achado. A boa-nova da sua irrupção arrebata, gera a grande alegria, orienta toda a vida para a consumação da comunhão com Deus, opera a entrega apaixonada. Faz com que a perda seja ganho. Transforma o sacrifício em festa. Faz da troca de valores o melhor negócio.
 Deve ainda o discípulo ter a coragem de aceitar que sua conversão pode dividir a família. É possível que haja uma de-cisão na sua casa. Pode surgir uma guerra emocional e religiosa do pai incrédulo contra o filho convertido, ou do filho rebelde contra o pai arrependido; da mãe beata contra a filha que mudou de religião, ou da filha renitente contra a mãe recém-convertida; da sogra falante contra a nora humilde, ou da nora avançada contra a sogra considerada quadrada por causa de Jesus.
 O discípulo deve saber que seus inimigos poderão ser os da sua própria casa. Deve, no entanto, estar informado de que no Reino de Deus existe o milagre da multiplicação dos relacionamentos interpessoais e dos privilégios sociais: "Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou mãe, ou pai, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba já no presente o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna - ver também que a Cruz gera nova família.
 É indispensável ainda que o discípulo saiba o que quer, porque a vida de um seguidor de Jesus é comparável à de um sentenciado à morte: ele pode morrer de morte violenta ou não, mas, em qualquer dos casos, existe morrendo para poder morrer vivendo. Quem quiser preservar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder, de fato a salvará.
No Reino de Deus convive-se com o paradoxo de que achar a vida é perdê-la, e perder a vida por Jesus é achá-la.
 Esta opção de vida leva o seguidor de Jesus a uma disposição de limitar-se tanto quanto necessário:
"Se tua mão te faz tropeçar, corta-a; pois é melhor entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos, ires para o inferno, para o fogo inextinguível (onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga).
E se teu pé te faz tropeçar, corta-o; é melhor entrares na vida aleijado do que, tendo o dois pés, seres lançado no inferno (onde não lhes morre o verme nem o fogo se apaga). E se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o; é melhor entrar no Reino de Deus com um só dos teus olhos do que, tendo os dois, seres lançado no inferno".
Este modo de vida exige espírito voluntário. Entretanto, no texto onde Jesus ensina maneiras de se imporem limites, raia a luz da mais intensa expansão e liberdade.
A mão, pé ou olho amputado são do discípulo mas não são o discípulo. O cristão que se limita por causa do Reino de Deus continua inteiro, completo, pleno.
 Outra surpresa diante da qual Jesus nos coloca é que essa aparente castração é o caminho para a verdadeira vida (a palavra vida aparece duas vezes no texto como resultado desses atos). Resta-nos a constatação de que aqueles que rejeitam essa limitação vão plenos para o inferno. E a última estranheza da sabedoria de Jesus é que aquele que se apodera de menos (mão), anda por caminhos menores (pés), e vê menos (olho), é quem vai se apoderar de mais; é quem entrará no céu e verá a glória de Deus no Reino eterno.
 As implicações de cada uma dessas lições afetam os negócios, os sentimentos, os relacionamentos e as ambições do cristão. Não se trata de autoflagelação, mas de autolimitação não patológica produzida pela certeza de que tudo aquilo que faz tropeçar tem que ser evitado.
 O discípulo, para aprender de Jesus, tem que ter a palavra do Mestre como o ponto de partida, o ponto de apoio, o ponto de referência, o ponto de vista e o ponto de chegada.
"Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha".
O discípulo tem que estruturar a sua vida única e exclusivamente sobre a Palavra de Deus. Não há outra base. Seus pontos de vista são os de Deus. Sua estrutura é a verdade do reino de Jesus. As opiniões próprias são sepultadas quando alguém se dispõe a ser um aprendiz do Mestre. Importa ter a mente de Cristo e não aceitar viver de outra maneira que não seja sobre as bases do ensino do Senhor Qualquer outra obsessão termina quando começa o discipulado. Nele só há lugar para a sadia obsessão do Reino de Deus. Nem afazeres, nem compromissos, nem qualquer relacionamento humano podem tomar o lugar e a importância do convite de Jesus. "Certo homem deu uma grande ceia e convidou a muitos. À hora da ceia enviou o seu servo para avisar os convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante, todos à uma começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um campo e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro disse:
"Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te que me tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me, e por isso não posso ir.
Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o dono da casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos da cidade e traze aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Depois lhe disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar.
Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga todos a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia."
 O consumismo e as ambições materiais têm que estar sob o completo domínio da sabedoria de Cristo para não sufocarem a Palavra de Deus no coração do discípulo. O cristão deve ser capaz de dizer como Wesley: "Desfaço-me do dinheiro o mais rapidamente que posso para que, porventura, ele não encontre o caminho do meu coração". Instalar a segurança da vida sobre as riquezas é dificultar a entrada no Reino de Deus. É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha.
 Até mesmo algo tão significativo quanto a morte na família é menos urgente que o convite de Jesus.
Enterrar o pai não é tão importante quanto pregar o Reino de Deus. O Mestre diz:
"Deixa aos mortos o enterrar seus próprios mortos. Tu, porém, vai, e prega o Reino de Deus".
O engajamento no discipulado é inadiável e intransferível. Há maior urgência em salvar vidas do que em sepultar os mortos. Este é, todavia, um princípio in extremis, para ser praticado diante da necessidade irresolvível de se fazer uma opção.

Seguir Jesus é caminho sem retorno

Pelo menos é assim que o candidato deve encarar.
"Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o Reino de Deus".
Não pode haver titubeio.
Avançar é a única alternativa viável. O discípulo diz:
"Esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação em Cristo Jesus".
 O caminho com Jesus não conduz aos palácios, às mansões majestosas ou às alturas da glória do mundo.
Seguir o Mestre leva mais facilmente ao desabrigo do que a um colchão d'água. É mais provável que vá dar em um pequeno apartamento do que em uma suíte presidencial. Não raramente as raposas e as aves encontrarão maior conforto e segurança domiciliar do que alguns engajados seguidores de Jesus.
"As raposas têm os seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.
Diante de tais conclusões, um candidato ao discipulado desistiu do percurso existencial, social, econômico e espiritual da trajetória cristã. Ler o que Paulo declara sobre a vida dos ministros de Cristo, vivendo as mais sublimes expressões do Reino de Deus e as conseqüências de tais compromissos aos olhos do mundo, comprova a realidade desta afirmação:
"Pelo contrário, em tudo recomendamo-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na palavra da verdade, no poder de Deus; pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas, por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama: como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos, e entretanto bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo."
 Sim, é indispensável que aqueles que pretendem seguir Jesus avaliem com coerência e seriedade o projeto de vida para o qual estão sendo convidados.
Decididamente eles têm que querer. E querer mesmo. Este desejo deve ser mais forte do que a vontade de casar, ter um diploma de faculdade, ter filhos e inclusive ser feliz. (Não se está estimulando a abstinência ou a desistência de nenhuma dessas realidades; coloca-se apenas o desafio de que a ambição do discipulado esteja acima dessas ambições, não tendo, necessariamente, que ser extirpadas da vida.)
Seguir Jesus deve ser o desejo supremo, a decisão mais importante.
"Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular as despesas e verificar se tem os meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar".
Quem começa tem que acabar. A torre da vida não pode ser abandonada no meio do caminho. O fracasso de não concluir a obra tem um eco eterno. Prepare os seus contingentes morais, psicológicos e espirituais para enfrentar o inimigo nesta peleja.
"Qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma embaixada pedindo condições de paz".
 Discipulado é como a escada de Jacó; só termina no céu. É obra a ser realizada durante toda a vida, sem feriados nem dias santos.
Até dormindo tem-se que estar alerta. Diante de todas essas colocações é que fica clara a razão de o discípulo desejar o discipulado e estar decidido a seguir o Mestre.
 Nos dias em que vivemos, quando a mensagem do Evangelho tem sido insípida e diluída, sem substância, talvez me julguem estar exagerando ou tentando direcionar os desafios de vida aqui expostos para uma classe de pessoas especialmente vocacionadas.
Imaginam que os comerciantes, industriais, empresários, fiscais da Fazenda, políticos, advogados e gerentes de bancos estão isentos desse projeto de vida.
Pensam: É possível que tal convite se dirija especificamente ao clero, à classe religiosa, aos pastores e obreiros, ou aos crentes muito consagrados.
Acontece que a Bíblia não conhece essas distinções.
Não há clero, laicato, pessoas de tempo integral e de tempo parcial, o grupo dos crentes simples e dos discípulos engajados. Jesus só tem uma categoria de seguidores: discípulos. Para estes, sua salvação é comum; sua vocação também; os privilégios, idênticos. Finalmente, a missão de cada um, modelada na missão do próprio Jesus, é a mesma para todos.
Se convidamos as pessoas a seguirem a Jesus sem sermos honestos com elas, mostrando-lhes até onde pode levar a coerência desse estilo de existir em Cristo, estaremos sendo mercadores da Palavra de Deus, camelôs do Evangelho, não discipuladores que falam em nome de Cristo, na presença de Deus, com sinceridade e da parte do próprio Deus.
 O segredo está em aprendermos a colocar todas essas coisas sem o peso do legalismo, do modismo da santidade aparente e do cosmético da pseudopiedade.
É o amor de Cristo que nos constrange a viver dentro desse padrão. Trata-se de vida. E o que tem relação com a vida é natural. Cristo não nos chama para um desempenho teatral, mas para uma proposta de vida. E se o amor for a fonte propulsora dessa existência e a substância da alma de discípulo, seguir-lhe os passos torna-se algo natural. Em vista disso, quando um discípulo cai, Jesus apenas questiona seu amor: Tu me amas? Se me amas, então segue-me.
O amor responde à altura do convite ao discipulado O discípulo aprende humildemente O seguidor de Jesus não é nem um descobridor nem um pesquisador autônomo, mas apenas um aprendiz.
Dele se requer que se limite a seguir a Jesus, aceitando que Cristo é o Absoluto dos absolutos, o Senhor dos senhores, o Rei dos reis, o Mestre dos mestres, o Tudo de todos.
"Quanto a ti, segue-me".
 Limitar-se a seguir a Jesus é limitar-se no Ilimitado; é deixar-se aprisionar pela Liberdade; é conter-se no Infinito. Para a liberdade foi que Cristo nos libertou.
"Permanecei, pois, firmes, e não vos submetais de novo a jugo de escravidão".
Todavia, para viver nesse espaço moral, existencial, psicológico, social e espiritual, o discípulo tem que aprender a aceitar a disciplina. Um seguidor de Jesus sem disciplina é como argila sem modelador. É como a terra no princípio: sem forma e vazia; é bastardo, não filho, criado como rebelde nas esquinas da vida.
Quando se fala em disciplina, fala-se em algo que "no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça".
Uma das poucas maneiras contemporâneas de essa confrontação se dar, além de pregação, ensino e convívio franco com os irmãos, é quando se tem a capacidade de ler a Bíblia contra si mesmo.
 Nesse andar após Jesus o discípulo precisa aceitar fortes repreensões.
Deve ser capaz de ouvir: "Arreda Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus e, sim, das dos homens", sem escandalizar-se e sem ser tentado a abandonar a caminhada.
Também aceita dramáticas lições sobre humildade na presença de todos, admitindo que os grandes no Reino são os pequenos, e os fortes e poderosos são os humildes.
Descobre que no discipulado a ordem natural das coisas é subvertida.
Aprende que a ética do mundo de Jesus é a contracultura da presente ordem das coisas, pois Cristo, chamando-o, diz:
"Sabeis que os governadores dos povos dominam, e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será o vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos."
Nesta conclusão, capta-se outra vez o "após mim" de Jesus na expressão "tal como o Filho do Homem".
 O discípulo não pode ser cheio de melindres, um hipersensível, um não-me-toques, pois muito freqüentemente suas opiniões serão contraditas e as sugestões reduzidas a pó ante a realidade irreprimível do amor de Deus e do Absoluto que o Amor manifesta no Reino de Deus.
Repressões ortodoxas feitas pelos discípulos têm que ser, não raras vezes, repensadas, assim como posições intolerantes e rabugentas reavaliadas, mesmo diante de crianças:
"Trouxeram-lhe então algumas crianças para que lhes impusesse as mãos, e orasse; mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, disse: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus".
 O seguidor é aquele que anda após Jesus. Caso contrário, não é seguidor, é batedor. E nesse caminhar após Jesus os seus atos sectaristas e ortodoxos não raramente serão censurados em função da miopia espiritual da perspectiva do grupo que sempre acomete o discípulo. O aprendiz possui uma forte tendência a tornar-se um segregário, um sectário e um purista doutrinário. É capaz de, em nome da ortodoxia sem amor, proibir alguém de fazer o bem em nome de Jesus, somente porque não faz parte do seu grupo de discipulado. Tais atos fiéis são censurados por Jesus com uma lógica imbatível:
"Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós".
E assim como os atos vêm a ser facilmente questionados, as motivações que levam alguém a realizar a obra de Deus também não estão livres de censura. Muito facilmente o discípulo confunde zelo e fanatismo, fidelidade com legalismo, paixão com revanchismo e coragem com ódio.
Jesus sempre questiona as motivações. Tão logo a pseudomotivação santa pretende trazer fogo do céu sobre homens, ele intervém:
"Vós não sabeis de que espírito sois. Pois o Filho do homem não veio para destruir a alma dos homens, mas para salvá-la".
 Concluindo, deve ficar claro que o lugar do discípulo é após Jesus, e como humilde aprendiz, pois a obra à qual ele é enviado a realizar não é um jogo de sortes e tentativas. Não pode ser escolhida, através de uma roleta-russa metodológica. O aprendizado para a obra de Deus dispensa os critérios de eliminação por erros. As instruções já estão dadas. Os perigos já estão apontados. Os métodos já estão definidos.
 Surgiram em nossos dias alguns professores pardais da metodologia eclesiástica e evangelística. São os inventores de novas maneiras de evangelizar. Todavia, Jesus continua nos chamando para andarmos após ele.
E nesse caminhar há liberdade para as devidas contextualizações e a criatividade inerente ao espírito humano. No entanto, critérios já estão definidos dentro da firmeza da Palavra de Jesus e com o aval do sucesso do seu ministério, cuja semente, morta, deu fruto em nossa vida.
 Na concepção neotestamentária da formação do caráter cristão no interior do discípulo, a confrontação é uma estratégia indispensável. Paulo se refere ao fato de tal processo ser imprescindível na escola do aperfeiçoamento dos crentes:
"o qual anunciamos, advertindo a todo homem e ensinado a todo homem perfeito em Cristo; para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim".
Hoje não temos muitos discípulos, na plenitude do termo. Temos sim, dissidentes, gente que morde e que se morde, tão-somente recebam instruções, repreensões e questionamentos. Ainda não aprendemos o que significa o "vir após mim" de Jesus. E sem tal compreensão não há discipulado.
 O discípulo entrega os seus direitos a Deus e ao próximo A fórmula teológica, comportamental e psicológica através da qual Jesus traduziu essa afirmação é a seguinte: "A si mesmo se negue".
Poucas verdades têm sido tão mal compreendidas quanto esta que se refere ao imperativo da autonegação.
Em razão deste fato acho melhor começar dizendo o que não é autonegação.
 Corre no meio evangélico a idéia de que autonegação é aniquilamento da vontade. Contudo isso é falso. A volição é parte fundamental da estrutura sadia da psique humana. A pregação da aniquilação da vontade não é cristã, é budista. Em razão disto há milhares de cristãos vivendo num cristianismo doutrinário, com a interferência de uma espécie de budismo psicológico e existencial. Não me admira que tal conceito de autonegação tenha vindo de cristãos do Extremo Oriente, como Watchman Nee. Não resta dúvida de que o negar-se a si mesmo tem suas implicações na vontade humana.
Entretanto, isto não deve diluir toda a vontade da pessoa.
 Pela má compreensão dessa realidade há os que pensam que a autonegação acerca da qual Jesus falou é a antítese de tudo quanto possa se constituir em desejo. Neste caso, até a negação de si seria um desejo contra todo desejo natural. Alguns absolutizam tanto este conceito que chegam a incluir entre as vontades que devem ser golpeadas o desejo de pregar o Evangelho, declarando: Este desejo vem da alma. E com esta idéia vão budificando o Cristianismo, transformando seus seguidores em seres cujo ideal é a impessoalidade, a morte da pessoa, do desejo, da vontade e, por fim, da vida plena.
Se têm desejo de ir à praia, se proíbem. Afinal, isto é uma vontade.
Se sentem vontade de saborear determinada comida, negam-se. Afinal, isto é um desejo.
 Também negar-se a si mesmo não é tornar-se um mórbido alienado, uma espécie de avestruz, com a cabeça enterrada no buraco da religião, pensando que assim pode se refugiar definitivamente do mundo. Alienação não é autonegação, mas suicídio intelectual, social e humano. É exílio da humanidade individual no cativeiro do escapismo religioso.
 Outra faceta distorcida do convite de Jesus à autonegação é aquela que se expressa em termos de um meticuloso intimismo legalista. Esta maneira de entender o convite de Jesus transforma a alma em algo parecido a um loteamento de cemitério, onde muitas cruzes têm de ser fincadas a fim de se matarem as áreas vivas da alma. E isto não passa de uma negativa atitude castrante. Trata-se de uma autonegação que só se volta sobre si mesma. Paradoxalmente, vem a ser um autonegar-se egoísta. Negam-se para si mesmos, não apenas a si mesmos.
Ninguém é beneficiado com tal atitude. E a vida se torna prisioneira, agrilhoada na cadeia psicológica da falsa perspectiva da autonegação.
 A auto-anulação que não gera ação e obras altruístas em favor dos outros é apenas suicídio existencial e psicológico. É a repetição do isolamento dos mosteiros medievais na dimensão do santuário da alma humana. Esse negar-se a si mesmo só é sadio se implica um dar-se a si mesmo.
 Autonegação não é automartírio. Não é arriscar desnecessariamente a vida. Não é autoflagelação, seja física, seja psicológica. Na perspectiva do negar-se a si mesmo não podemos nos esquecer de que Jesus veio para que tivéssemos vida e vida em abundância.
Negar-se a si mesmo também não é praticar exercícios ascéticos.
Não podemos nos esquecer de que quem nos incitou ao negar-se a si mesmo foi Jesus de Nazaré, aquele que comeu sem lavar as mãos, freqüentou a casa dos fiscais de renda que recebiam propina, aceitou sentar-se à mesa com pecadores, e foi chamado de glutão e bebedor de vinho porque comia com alegria e entusiasmo.
 Negar-se a si mesmo não é nada que vai além do projeto de vida de Jesus. Qualquer invenção de autonegação que não seja encontrada e praticada na vida de Jesus é doentia, patológica e sub-humana.
Cristo é o protótipo da autonegação.
Nele a autonegação não é incompatível com felicidade. Nele o negar-se a si mesmo admite a tensão existencial vivenciada por Paulo:
"entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo".
Quando o cristão pratica o verdadeiro negar-se a si mesmo é que o seu eu se purifica. E nesse processo morre não o ego, mas sim o egoísmo.
 Além de ser promovida pelo dar-de-si, essa autonegação pode também ser resultado das pressões produzidas pelo estilo de vida do cristão:
"Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal".
 Negar-se a si mesmo é renunciar a tudo quando se tem, pois há muitos aspectos daquilo que somos mais fáceis de serem renunciados do que algumas coisas que temos.
E mais: a autonegação envolve a renúncia da possibilidade de praticarmos o pecado moral e motivacional.
No entanto, muito acima disso está o abrir-se inteiramente a Deus e ao próximo.
Negar-se a si mesmo só faz sentido se for um negar-se por alguém que não seja o próprio eu. E as duas únicas categorias de existência consciente fora de mim para as quais preciso doar-me são Deus e o próximo. Assim, a autonegação do ponto de vista cristão se realiza na autonegação coincidente com uma reação altruísta.
 Aceitar o convite de Jesus para segui-lo já implica, pois, o início desse processo, já que, para andar com ele, o discípulo tem que estar disposto a negar tudo, desde os bens materiais até os relacionamentos afetivos.
 O discípulo nega-se a si mesmo Jesus traduz esta afirmação aparentemente contraditória com uma declaração original: Dia a dia tome a sua cruz. A proposta começa com a expressão dia a dia, o que significa a ausência de feriados, descanso e distração. Nessa declaração Jesus faz jungir sua proposta à ininterruptibilidade do fluxo da existência. É todo dia, em todo lugar e a toda hora, vinte e quatro horas por dia. O que nos faz lembrar o salmista: Até de noite o coração me ensina.
 Tal apelo pervade todos os recônditos da experiência humana e faz do calendário do cristão uma via crucis. E nem sempre esta via crucis é uma via sacra. Alías, a via crucis coincide mais freqüentemente com a via secular, já que o dia-a-dia do discípulo é mais vivido no mundo - onde ele é sal e luz - do que na igreja - onde ele repousa e refrigera a alma.
 Mais uma vez Jesus introduz no seu apelo ao discipulado o elemento vontade. Ele diz: Tome a sua cruz. E o texto estabelece uma seqüência: A si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz. Isto significa que só depois de nos esquecermos de nós mesmos é que estaremos prontos e com vontade suficientemente forte para tomarmos a cruz.
Estranho paradoxo: só depois de negar-se a si mesmo é que o discípulo tem a força necessária para autenticar-se no mais valoroso, altruísta e abnegado ato de vontade, ou seja, tomar a cruz. Note-se, porém, que a cruz a ser tomada já está preparada desde antes da fundação do mundo. O convite de Jesus é claro: Tome a sua cruz. A cruz é sua; é minha. Cada um de nós a tem, é somente carregando-a que nos tornamos aptos a praticar boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.
 Ninguém pode fugir. Todo discípulo tem a sua. Cristão que não a tem não é cristão; é humanista, é bondoso, é caridoso, é qualquer outra coisa, menos discípulo. Cristo nos coloca diante do cotidiano desse levar a cruz, confronta-nos com a necessidade de a tomarmos livremente, e nos garante que cada um tem a sua própria.
Contudo, precisamos ainda de alguns esclarecimentos.
O que significa, de fato, esta cruz? Qual a sua natureza? Em que se caracteriza? Quais os seus propósitos?
Usaremos uma estratégia já empregada e, antes de entrarmos no aspecto positivo da descrição do que seja carregar a cruz, definiremos o que não é carregá-la.
 Carregar a cruz não é desventura Não é azar. Não é ser pé-frio. Não é ter uma sogra insuportável ou um patrão impossível de com ele conviver. Também não é cair da ponte, escorregar da escada ou quebrar a cabeça. Não é sofrimento natural. Também não é sofrimento ocasional causado por circunstâncias desagradáveis que provém da incompatibilidade de gênios e temperamentos. Levar a cruz não é ser acometido de enxaqueca ou reumatismo, nem tem relação com artrite. Levar a cruz não é sofrimento físico provocado por desordens no corpo humano.
Afirmo isto porque, não raramente, ouço pessoas dizerem: Meu marido é minha cruz; ou Esse menino é meu calvário; etc. Quando muito, estas coisas podem ser fardos, jugos, opressões, ou espinhos na carne. Cruz é outra coisa.
 Para o discípulo, levar a cruz tem, pelo menos, quatro dimensões:
 1) Inclusão na Cruz de Cristo.
Cada discípulo está morto com Cristo:
"Porque se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente seremos também na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que foi crucificado com ele nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos".
Paulo disse: Estou crucificado com Cristo. Nesta dimensão a cruz tem a ver com a nossa salvação, e carregar a cruz é permanecer na graça salvadora de Deus em perseverança e santidade, identificados com a morte salvadora e vicária de Jesus, mantendo comunhão com os seus sofrimentos, conformando-nos com ele na sua morte.
 2) Paixão existencial, psicológica e emocional.
Para Jesus, carregar a cruz foi também um ato de paixão:
"Esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim".
Jesus Cristo, a fiel testemunha, o primogênito dos mortos, e o soberano dos reis da terra, aquele que nos ama e nos libertou dos nossos pecados.
Paixão por Deus, pela vida e pelos homens. Só um apaixonado morre para salvar o objeto do seu amor.
 Na cruz do discípulo não pode faltar paixão, gemido e desejo de dar-se a si mesmo. Paixão é amor aquecido. É coração incandescido pelo fogo do sentir. Assim deve ser o discípulo: um ser virtualmente apaixonado por Deus e pelos homens, ainda que isso implique morte.
Morrer pode ser a mais profunda maneira de sentir paixão pela vida, ainda mais quando se crê que esta é eterna.
 3) Rejeição social, familiar e religiosa.
Paixão e rejeição não são a mesma coisa. Pode haver paixão sem rejeição. No entanto, toda rejeição gera choro, gemido, desejo, paixão.
É bem possível que a paixão venha acompanhada de honra e de admiração. Um homem apaixonado nem sempre é rejeitado. No discipulado, entretanto, a paixão é a irmã gêmea e inseparável da rejeição. E é neste ponto que a rejeição faz da paixão mais paixão ainda, pois a rejeição tira dela sua honradez e dignidade. A paixão aliada à rejeição é paixão pura, sem glória humana.
 Não é difícil perceber que é para esta dimensão da cruz que todos os discípulos estão caminhando. Todos que querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.
A coerência absoluta com Jesus gera hostilidade.
Andar com Cristo significa tornar-se espetáculo ao mundo, tanto a anjos como a homens.
É ser a reação da bênção à força de maldições.
É ser considerado o esgoto do mundo, a lixeira da sociedade, a escória da civilização.
 4) A solidariedade na dor do outro.
A cruz de Cristo foi um levar de dores, enfermidades, iniqüidades e injustiças, que teve efeitos vicário, salvífico, substitutivo e inclusivo. Com o cristão é diferente. Nossa cruz não produz nenhum desses efeitos.
Todavia, permanece o efeito da solidariedade: "Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei.
É interessante observar que esse levar as cargas tem relação, no contexto antecedente de Gálatas, com o pecado do irmão.
A solidariedade do discípulo tem que atingir o nível de empatia que acometeu o coração de Paulo:
"Quem enfraquece que também eu não enfraqueça? Quem se escandaliza que eu também não me inflame?".
Ou:
"Agora me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja.
Chorar que os que choram é uma forma de carregar a cruz". No entanto, muito mais que isso é chorar pelos que não choram.
Foi nesse nível que Jesus se solidarizou com a vida humana indiferente e empedernida. O discípulo deve ser o nervo exposto dos que não têm sentimentos.
 O discípulo aprende com o que Jesus ensinou e viveu A conclusão dinâmica de Jesus no convite ao discipulado é: "Siga-me".
Nos dias de Jesus de Nazaré, na terra da Palestina, isto significava andar junto, comer a mesma comida, beber a mesma água, dormir nos mesmos lugares, passar o dia juntos, correr os mesmos riscos e assistir às mesmas maravilhas. Seguir a Jesus era algo histórica e geograficamente definido pela realidade do convívio físico. Como João explica, esse seguir equivalia a ouvir uma voz com um timbre certo, contemplar um rosto que tem fisionomia, apalpar um corpo concreto, enfim, manter comunhão com uma pessoa real no tempo e no espaço.
Agora, no entanto, é diferente. Jesus está no céu, à direita de Deus, cheio de poder e glória, e nós estamos aqui neste mundo de perplexidade e revolta.
Para nosso supremo consolo, Jesus vive em nós na pessoa amável e doce do seu Espírito.
Todavia, em razão disso esse siga-me tomou outra dimensão. Tem implicações na vida concreta e geográfica, na medida em que o caminhar com Jesus desemboca na perspectiva ética, o que por vezes nos afasta de certos lugares por onde Jesus não passou nem passaria.
Mas provavelmente isso se aplica mais ao palácio do caudilho do que à casa do pecador. No entanto, a dimensão desse siga-me é comportamental e motivacional.
Seguir demanda do discípulo uma disposição prática quanto a assumir um estilo de vida dinâmico, desinstalado, imprevisível e perigoso.
 Seguir Jesus é acompanhar o caminho de Deus, é aprender como ele reage dentro da condição humana. E para que isso seja possível, torna-se indispensável que estudemos o estilo de vida humano de Jesus de Nazaré, conforme revelado nas Escrituras: Em Cristo nós sabemos como Deus é e como o homem deveria ser.
 A ênfase que daremos ao existir humano de Jesus tem a finalidade de contrapor-se à idéia de que apenas seus ensinos devem ser estudados. Na verdade, a única maneira de fazer teologia e usar acertadamente a hermenêutica é fazer da vida de Jesus a chave para a interpretação e prática do seu ensino.
Estudar a ética do Sermão da Montanha sem tentar discernir como Jesus a viveu nos seus três anos de ministério é correr o risco de exagerar as lições ou reduzi-las ao padrão do mesquinho legalismo humano. Tudo o que ele ensinou, ele viveu. Ele é o Verbo que se fez carne. Suas palavras ganharam sangue, nervos, respiração, pele e suor. Acompanhá-lo é unir-se à sabedoria com rosto e olhos. Conhecê-lo é mergulhar no poço humano do conhecimento pleno.
Aventurar-se com ele é desenterrar o tesouro da verdade eterna, cujas jóias brilham mais que as estrelas no firmamento. Cristo é a Vida, e só pode ser dignamente chamado de vida aquele existir que dele brota. Fora de Cristo as coisas existem mantidas pelo seu poder de coesão, mas não têm vida no sentido essencial da palavra, conforme entendida por Deus.
 É nesse sentido e nessa visão de que a vida de Jesus é o único e definitivo caminho do discípulo que vamos andar. Jesus é aquele em quem haveremos de nos esteriotipar. Ele é o arquétipo, o modelo, o único verdadeiramente Homem. Nós nos tornamos, hoje, meras distorções desse ideal.
Por isso, daqui para frente, neste trabalho, tentaremos andar lado a lado com Jesus, a fim de que com ele aprendamos a VIVER.
 Jesus nos ensina a ser objetivos e diretos Com Jesus não aprendemos a fazer rodeios nem a pronunciar meias-palavras. Também não é ele que nos ensina o famoso jogo de cintura, nem a aplaudida diplomacia mineira.
Nele não encontramos palavratórios desnecessários adubados com frases ocas e vãs. A prolixidade não tem vez nos seus discursos. Ele jamais desejou impressionar os seus ouvintes através da retórica. E sua vida, mais do que suas palavras, foi extremamente prática e objetiva.
 Dormia à noite, mas também sabia aproveitar para o seu repouso os momentos em que lhe era impossível fazer outra coisa, como no intervalo entre um e outro trabalho evangelístico. Seu senso de objetividade lhe permitia concluir que trabalhar em meio à exaustão é improdutivo e, neste caso, é melhor descansar.
 Os mandamentos de Jesus, ordens claras e instruções definidas, são também capazes de nos ensinar a ser objetivos e a conquistar um senso de direção. Nunca encontraremos dubiedade em suas palavras:
v      Reconcilia-te com teu irmão.
v      Não jures de maneira alguma.
v      Não resistas ao perverso.
v      Amai os vossos inimigos.
v      Orai pelos que vos perseguem.
v      Não saiba a esquerda o que faz a direita.
v      Vende teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu.
v      Ninguém pode servir a dois senhores.
v      Buscai em primeiro lugar o reino de Deus.
v      Não julgueis para que não sejais julgados.
v      Não deis aos cães o que é santo.
v      Pedi e dar-se-vos-á.
v      Entrai pela porta estreita.
v      Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus.
 Era muito provável que tais fórmulas éticas e teológicas ganhassem outras articulações em nossos lábios:
- Seria muito interessante você tentar fazer as pazes com o seu irmão.
- Faça o possível para não jurar. Certo?
- Saia de mansinho da presença do perverso, está bem?
- É muito difícil, mas mesmo assim tente amar o seu inimigo. Quem sabe você consegue.
- É mesmo improvável que se consiga servir a dois senhores. Todavia, só você é que pode avaliar isso. Cada caso é um caso.
 Além das lições que as palavras do Senhor Jesus encerram em si mesmas, como articulação do pensamento exposto, elas nos ensinam também que devemos ser pessoas diretas e práticas. Nosso raciocínio dever ter rumo e endereço. Nossas idéias devem ter sucessões conectadas. A avalanche de nossos pensamentos deve ser obrigada a entrar pelo conduto da objetividade. Ao contrário dos nossos, que mais se assemelham à chuva fina e espaçada, os pensamentos de Jesus são como o jorrar concentrado de uma cachoeira.
 Se como seus discípulos aprendermos a falar objetivamente como ele, então a mensagem do Evangelho tornar-se-á clara e límpida em nossa boca. Não mais acontecerá que, na tentativa de esclarecermos um texto ou uma idéia cristã para alguém, deixemos a pessoa mais confusa ainda.
 Outra área na qual notamos a objetividade de Jesus é no seu critério de seleção de discípulos.
Não o vemos impressionado com as multidões nem com o frenesi das massas. Ele sabia que estas são semelhantes às nuvens do céu: nada mais que vapor. A massa humana ovaciona, aplaude, elogia, acompanha, enche auditórios e aduba o ego do homem tolo, mas não faz ecoar para sempre as palavras de alguém.
Por isso Jesus nunca se iludiu com elas. Compadecia-se delas. Curava-as freqüentemente. Mas não se impressionava nem com o seu número nem com a sua adesão.
 Quando notou a superficialidade de seus interesses e o materialismo de suas idéias, ele as censurou.
Quando percebeu que havia muita gente curiosa em volta de si, colocou o mar como filtro de interesses. Jesus não foi um purista religioso que primava exclusivamente pela aparente qualidade; ele sabia também que o seu trabalho não alcançaria a objetividade desejada caso se dedicasse apenas às multidões. Por isso, além de ser um homem de grupos terciários (200 pessoas em diante), foi prioritariamente Mestre de grupos primários (de uma a doze pessoas). Quem lida apenas com as multidões trata com o hoje, com o agora, mas não forma nada para o amanhã e, pior, não se forma nem se reproduz em ninguém. Não pode dizer como Paulo:
"Por esta causa vos mandei Timóteo, que é meu filho amado e fiel no Senhor, o qual vos lembrará os meus caminhos em Cristo Jesus, como por toda a parte ensino em cada igreja".
 Jesus preferia ter menos gente na missão do que pessoas reclamando da comida e do desconforto.
Sabia que era mais fácil trabalhar com poucos, mas dispostos, do que com muitos sem sentido de urgência. Entendia que poucos mas rijos chegariam a um melhor resultado do que muitos sentimentalistas.
Optou por ter menos gente ao seu lado, preferindo isto a liderar um grupo grande de duvidosos e insubordinados. A objetividade de Jesus se manifesta até mesmo no momento da traição:
"O que pretendes fazer, faze-o depressa".
 Também ninguém foi mais prático do que Jesus. Foi prático sem ser pragmático. E a sua praticidade tem suas marcas até nos sacramentos que instituiu:
"Tomai, isto é o meu corpo. Bebei, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos".
Seu batismo é simples; é ministrado com elemento básico, água, podendo ser praticado sem testemunhas, em qualquer lugar: no deserto, num quarto, numa sala, num rio;  e a qualquer pessoa, contanto que haja arrependimento e fé.
 Sua marcha para o calvário também foi marcada pela objetividade:
"E aconteceu que, ao se completarem os dias em que devia ser ele assunto ao céu, manifestou no seu semblante a intrépida resolução de ir para Jerusalém".
A partir desse momento Jesus só pára a fim de instruir acerca do amor ao próximo, para um breve lanche com os amigos, para libertar os oprimidos pelo diabo e para confrontar os hipócritas.
Seu caminho era, no entanto, para a frente. Sem recuo. Sem retrocesso.
Nenhuma ameaça o intimidava. A raposa não o impediria na sua obra redentora, pois seu tempo havia chegado. Era preciso terminar o que havia começado. Até seus soluços são rápidos, apesar de apaixonados. Não havia tempo para um longo período de lamentação sobre Jerusalém. Era chegada a hora de ser paradoxalmente glorificado o Filho do homem e, quando esse momento chega, o relógio divino não admite atraso. A hora é certa. Não pode faltar objetividade no cumprimento do calendário profético.
Tal deve ser também o discípulo - uma pessoa com senso de direção e objetividade:
"Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar".
Urge que nossos alvos sejam claros. Nossas idéias não devem ser comparáveis a sombras disformes. Temos que, pelo menos, ver como por espelho.
Nossa mente deve ser capaz de definir propósitos, meios de ação e objetivos específicos.
 Jesus nos ensina a ser lógicos Sopram sobre nós os ventos da ilogicidade, respaldada numa falsa idéia de espiritualidade. Tais brisas nos trazem as contraditórias idéias que concluem sobre a não confiabilidade das idéias.
Contraditoriamente, para se crer em tal conclusão, tem-se que confiar no mundo das idéias. Por outro lado existem também as ventilações dos raciocínios dicotomizados. São as ponderações dos que pretendem criar uma abismal separação entre a razão e o coração, como se ambos fossem adversários. Todavia, aquele que disse:
"Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força"
não parecia encontrar tal dicotomia ou policotomia na estrutura essencial da criatura humana. Coração e entendimento participam juntos na lógica do culto.
No entanto, para Jesus, nem a razão é a prostituta, como no dizer de Lutero, nem é tampouco a deusa idolatrada no Iluminismo. Para ele, a razão é apenas um elemento, um dos componentes com os quais Deus aquinhoou o homem, e que deve ser usado para seu serviço, e do próximo, através da mediação da fé que atua pelo amor calcada inarredavelmente nas Escrituras.
Por isso mesmo, as interpretações de Jesus acerca das Escrituras apelavam inevitavelmente para a lógica. Lógica sem logicismo. Racionalidade sem racionalismo.
As diferenças entre as expressões não são apenas semânticas. Os ismos são sistematizantes e fechados: pressupõem que tudo o que existe é passível de ser equacionado dentro de um sistema. Enquanto os atributos - lógica e racionalidade - partem de pressupostos revelados, incontestáveis e indefectíveis, a fim de, sobre estas bases não-movediças, erguerem seus sistemas racionais. Jesus demonstrou essa maneira de raciocinar partindo da causa para o efeito.
 Ele mandou amar os inimigos, mas essa ordem era lógica:
"Deus faz nascer o sol sobre maus e bons e vir a chuva sobre justos e injustos".
Ora, se todos são objetos da graça comum, por que, então, não devem os filhos de Deus reproduzir esta manifestação da Graça à comunidade humana, indistintamente?
 Fazer o bem a todos indiscriminadamente foi outro de seus mandamentos. Mas por quê? Ora, porque as recompensas espirituais resultam da prática do extraordinário, e não do ordinário.
 A monogamia foi por ele defendida. Cada homem deve ter apenas uma mulher, e vice-versa. Alguém que indague o motivo deve verificar que no princípio do mundo, antes da queda, era assim: um homem vivia com uma única mulher. Tal era o plano-piloto de Deus, e somente dentro deste comportamento em família é que encontramos o verdadeiramente natural.
 Não apenas não matar ou não adulterar, mas não permitir que tais sentimentos, motivações e pensamentos ocupem o coração. Por quê? Porque eliminar o efeito sem afastar a causa é o mesmo que colocar esparadrapo em leucemia.
 Jesus curou em dia de sábado. Diante da oposição levantada contra seu ato, disse:
"Não é o homem para o sábado, mas o sábado para o homem".
Esta aparente rebeldia e insubordinada declaração é, no entanto, dotada de uma lógica imbatível. É este seu raciocínio: se socorremos animais em dia de sábado, quanto mais a homens, que têm muito mais valor do que aqueles Um dos temas teológicos mais ensinado por Jesus foi o da previdência de Deus. Todavia, a base sobre a qual ele erigia seu ensino era extremamente lógica: quem cuida das aves e faz caso dos lírios não deixará, por certo, de se ocupar dos homens, que têm muito mais valor que uns e outros.
 Quando ele andava com os párias deste mundo ou aceitava convite para lanchar com fiscais de renda de má fama e conhecidas meretrizes, a fim de lhes pregar o Evangelho, seus argumentos contra os que se insurgiam diante desse seu aparente liberalismo comportamental também era invencível:
"Os sãos não precisam de médico e, sim, os doentes".
 Quando o rigor ascético dos fariseus tentou amarrá-lo aos usos e costumes irracionais, ele sacudiu de si e dos discípulos o pretendido jugo:
"Não é o que entra no homem que contamina, mas o que sai dele".
Porque o que entra é reprocessado e vai para o esgoto. Mas o que sai do verdadeiro homem, do eu, vem do coração O discípulo de Jesus deve ouvi-lo dizer: Segue-me na minha maneira de pensar.
Se pensássemos com as categorias de Jesus e usássemos a sua lógica, muitas interpretações descabidas que tiramos da Bíblia e da vida seriam evitadas.
Paulo é o mais típico exemplo do discípulo que aprendeu a usar a lógica de Jesus.
Suas cartas obedecem a esboços e idéias conectadas. Romanos é uma apologia da justificação pela fé absolutamente irrefutável. A pregação de Paulo, conforme explicada por Lucas, é de uma lógica inexpugnável. Os verbos usados para descrever sua maneira de expor as Escrituras são todos relacionados à lógica.
Quando em apuros no naufrágio, ele declarou que se seu bom senso tivesse sido seguido, nada daquilo teria acontecido.
 O discípulo é um ser que pensa, mas cujo pensar está subordinado às Escrituras. Ele não é um filósofo que absolutiza a mente e a razão como deusas das idéias e da verdade.
Ao contrário, parte sempre das Escrituras, faz suas idéias viajarem por elas e conclui com elas.
A maior lógica do discípulo é afirmar: As Escrituras não podem falhar.
 Jesus nos ensina o bom senso e o realismo Não é raro imaginar-se Jesus com alguém acima da necessidade de usar o bom senso.
Isto porque ele podia manter uma multidão no deserto, sem comida, por ser capaz de fazer um milagre a qualquer momento. Poderia, se quisesse, atravessar o mar sem temer o mau tempo, já que era capaz de acalmá-lo com um simples gesto. E até mesmo lhe era possível andar sobre as águas.
Contudo, as idéias que concebemos sobre o modelo de vida de Jesus, a partir destes fatos, são mágicas, irreais e não-razoáveis. Ainda que ele tenha feito as coisas que acima relatamos - como temos certeza de que as fez -, não as realizou como experiência rotineira nem com a despreocupação irresponsável, que inconscientemente a ele se pretende atribuir, em nome de seus poderes divinos.
 Alguém disse o seguinte sobre o bom senso de Jesus: O olhar de Jesus vê a vida com bom senso e realismo.
Dizemos que alguém tem bom senso e realismo quando para cada situação tem a palavra certa, o comportamento exigido, e atina logo com o cerne das coisas. O bom senso está ligado à sabedoria concreta da vida; é saber distinguir o essencial do secundário; é a capacidade de enxergar e colocar todas as coisas em seus devidos lugares. O bom senso se situa no lado oposto ao do exagero.
 Jesus não era como aqueles que pensavam utopicamente que somente o campo do crente é capaz de produzir.
Ele sabia que sol e chuva são dádivas comuns de Deus sobre todos os homens, terras e fazendas.
Ele conhecia as leis da natureza e não tentava violentá-las (seus milagres são milagres, não violências naturais). Ele não era do tipo que saía no inverno, pela fé, sem agasalho; ou de roupa quente no calor.
 Era carinhoso com a natureza, mas não um sentimental: amava os lírios mas sabia que o destino das ervas era o forno. Quando as figueiras brotavam folhas novas, esperava o verão e não o inverno Também conhecia tudo sobre safras e entressafras do trigo Se seus dias fossem os nossos, não deixaria um carro constantemente estacionado à beira-mar, porque sabia que a ferrugem destrói; nem dinheiro em caixas velhas, porque tinha visto que a traça rói, tampouco enterraria à vista um tesouro no quintal, pois não desconhecia que os ladrões espreitam, escavam e roubam.
 Jesus também não atribui ao cristão um papel diferente no mundo econômico, social e físico. O salvo pode ser pobre e doente, e suas feridas lambidas pelos cães.
Ele sabe que os corpos em putrefação atraem abutres.
Sabe ainda que a sobrevivência dos pássaros é espontânea. Percebe claramente que espinhos e abrolhos atrapalham o serviço do semeador Admite que há gerentes que roubam e são espertos.
Conhece o esquema hierárquico entre os militares.
Nota que os poderosos da terra exploram os mais fracos.
Observa a triste rotina dos desempregados em praça pública.
Compreende que todo bom patrão deve exigir contas e relatórios dos empregados.


É prático o suficiente para saber que uma casa sem alicerce cai, e que um edifício sem base sólida se arrebenta no chão, casa sobre casa cairá Também para ele não é surpreendente que uma indústria, comércio ou fazenda bem administrados se tornem lucrativo investimento, ainda que o dono seja um ateu.
 Jesus também olhou para as crianças com a ótica do realismo e do bom senso. Delas é o reino dos céus, mas não deixam de ser crianças: suas brincadeiras revelam muito do seu latente egoísmo, sua imaturidade e fortes caprichos. Ele observou como as criancinhas brincam de casamento na praça e os coleguinhas se recusam a danças, ou como querem brincar de enterro mas os outros não querem brincar de chorar.
 Não é obscuro para Jesus que o parto seja obra de amor e dor. Sabe que antes que o filho venha ao mundo o que está em relevo é o sofrimento.
Ele não era como aquele pastor que afirma que o parto da mulher cristã é menos dolorido. Reconhece no entanto que, após este, a mulher já nem se lembra das dores, pela alegria de ter trazido ao mundo um ser humano.
E a sabedoria prática de Jesus prossegue. Sabe que somente exércitos bem treinados podem vencer uma guerra. Conhece as estratégias dos assaltantes noturnos. Admite que a rendição é a única alternativa para um exército incapaz de vencer um confronto armado. Não desconhece que a casa, para não ser assaltada, precisa ter a porta bem fechada e que a vigilância é indispensável. Percebe como deve ser vergonhoso para alguém não terminar a obra que começou E, por último, ele não sublima o relacionamento entre irmãos. Ainda que sejam do mesmo sangue, filhos de um bom e generoso pai, um pode ser ordeiro enquanto o outro indisciplinado, mas este pode ser humilde e aquele orgulhoso. E mais ainda: o ciúme pode ser uma dura realidade entre irmãos O discípulo é, portanto, um ser que segue a maneira de viver de Jesus com o mesmo bom senso e realismo do seu Mestre. O que, no entanto, não o afasta dos grandes sonhos, dos grandes ideais, nem da fé que promove os impossíveis.
O bom senso não é inimigo dos ideais ou da fé. É com ideais e fé que o discípulo projeta e vislumbra os seus alvos, mas é com bom senso que dá os passos. Ainda que seja fundamental saber discernir os momentos em que o único passo que o bom senso pode e deve dar é um passo de fé.
 Jesus nos ensina a ser santa e integralmente humanos Estamos habituados a pensar em Jesus com as categorias teológicas do docetismo.*  Por mais que rejeitemos o docetismo como heresia, não raramente vemos o Senhor Jesus sob uma ótica docética. Vemo-lo como uma espécie de ser de transição entre a divindade e a humanidade. E quando fazemos a afirmação teológica categórica de que ele é tanto Deus quanto homem, por nossa má compreensão do que seja adoração para com a divindade, parece que inibimos deliberadamente a humanidade de Jesus, como se esta lhe conferisse menos crédito.
 Na minha peregrinação espiritual tenho mantido uma surpreendente relação com essas categorias teológicas e reais do Cristo vivo e redentor. Foi só depois que minha mente se abriu para a contemplação da sua humanidade que meu próprio conceito da sua divindade ganhou brilho. É mais Deus quem pode sê-lo enquanto homem. É mais forte quem tudo pode vencer enquanto fraco.
Possui total onisciência quem é capaz de tudo ver com o minúsculo olho humano. A humanidade de Jesus acentua o sentido da sua total divindade.
 Alguns trechos bíblicos nos permitem perceber que a humanidade de Jesus é humanidade mesmo.
E é somente nesta manifestação do seu existir humano que encontro o modelo para meu próprio existir.
Deixando claro que no emprego que fazemos da palavra humanidade não existe qualquer conotação de concessão ao pecado - conforme o sentido que o termo ganhou em nossa cultura - vamos tentar descobrir as mais simples e significativas expressões da humanidade de Jesus.
 Ser humano não é ser fraco moralmente. Ser humano é ter sentimentos normais e profundos; é ser sadio nessa categoria e dimensão de existir dentro dos critérios chamados humanos, a cujo grupo pertencemos.
 Jesus participou de todos os condicionamentos normais da vida humana. Seu estômago roncava quando tinha fome.
Quando o sol era causticante e o seu corpo se desidratava, ele sentia sede. Essa sensação era tão forte que a assumia como parte fundamental do seu existir humano.
Por isso mesmo não brincava com a sede de ninguém, nem com a própria. Seu corpo se fatigava como o de qualquer ser humano, não obstante sua saúde perfeita fosse um fato inequívoco, e parte lógica de qualquer teologia que julgue a sua humanidade como isenta de pecado.
 Seu corpo conhecia tanto o que era sentir frio como experimentar calor, e sua mente percebia o desconforto, a ausência de um teto seguro e aconchegante sob o qual repousar Jesus não romantizava a questão da sede, do cansaço, do sono, o frio e o desabrigo. Todas essas realidades foram experimentadas e manifestadas em sua vida: quando teve sede, pediu água; ao sentir-se cansado procurou um lugar para assentar-se; e dormiu quando teve sono.
Em meio à exaustão preferiu descansar; chorou ao ver um amigo morto, e se emocionou até o choro ao contemplar a cidade que o rejeitara. Quando o perigo da morte e do sofrimento lhe sobrevieram, experimentou tristeza e angústia. Sim, Jesus não romantizou a sua humanidade, ao contrário, assumiu-a com um realismo divino.
 A humanidade da mente de Jesus também se manifesta claramente. É preciso sublinhar este fato, à primeira vista um tanto óbvio, porque não raramente somos tentados a olhar para Jesus como possuidor de uma espécie de mente humana, e nos custa admitir que ela fosse humana mesmo. Mas tão verdadeira era a sua humanidade mental, que foi assolada por fortes tentações. As tentações são conflitos mentais, e Jesus foi atacado por eles em todos os níveis, não apenas naqueles que ficaram registrados nos Evangelhos.
Todavia, ele as venceu a todas sem pecado.
 Na véspera da execução do Calvário sua psique mergulhou em profunda depressão. A vida de Cristo não nega que a existência humana possa deprimir-se:
"A minha alma está profundamente triste até a morte."
 O mundo das emoções e das percepções humanas não foi negado nem escondido por Jesus em sua própria maneira de expressar sua vida humana. Ele manifestou afetividade natural pelas crianças, as quais, abraçando, abençoou.
Os pequeninos lhe causavam a mesma emoção que provocam em qualquer ser humano normal. Jesus também dava a si mesmo o direito de impressionar-se com as pessoas, ao ponto de amá-las à primeira vista.
Ele extasiou-se diante da fé de um pagão e da sabedoria de um doutor.
Na vida humana de Jesus o elemento surpresa era uma possibilidade. Pelo menos na manifestação da sua sadia e integral humanidade ele dava a si mesmo tal direito.
 A admiração é um outro fenômeno humano que não esteve ausente da vida de Jesus.
Seu realismo não pensava na categoria do "nunca pensei que fosse possível", mas sua humanidade admitia a admiração dos que dizem: "Não imaginei que fosse tanto". Suas emoções são tão fortes quanto humanas e santas. Ele se compadece dos mortos e consola os enlutados Ao se deparar com o povo faminto e desorientado, é tomado por compulsiva compaixão.
 Diante da incredulidade chega à indignação, mas não pode deixar de alegrar-se ao perceber que os pobres e simples de coração estavam abertos à realidade do Reino de Deus.
Choca-se com a impenitência das cidades nas quais pregou as boas-novas do Reino, e as repreensões que pronuncia são duras e ásperas. Sente-se contristado e indignado ao observar a cegueira espiritual dos fariseus.
Também ficamos cientes de que suas emoções necessitavam de desabafo e alívio. Manifesta seu cansaço em relação aos fariseus incrédulos com um profundo suspiro.
Quando vê que os discípulos não entendem suas repetidas e ilustradas lições sobre o amor e a compaixão, enerva-se educadamente.
 Uma das mais fortes evidências da sadia e integral humanidade de Jesus reside no indiscutível fato de ele experimentar intensamente o fenômeno amizade: seus discípulos são seus servos, mas apesar disso houve em sua vida tempo e espaço para as mais íntimas relações fraternas. Seja no alto do Hermom, seja no aconchego especial que ele deu a João, seja na iniludível preferência que demonstrou pela hospedagem na casa de Lázaro.
 Se aprendermos essa realidade sobre a humanidade de Jesus, nosso sentido de espiritualidade mudará inteiramente. A partir dessa compreensão o homem é tanto mais espiritual quanto mais santamente humano. Além disso, cria-se uma nova concepção de manifestação de humanidade piedosa. Com Cristo fica claro que a verdadeira piedade passa, antes de tudo, pelo caminho da verdadeira e santa humanidade, calcada na base da revelação escriturística. A única maneira de sermos sadios e libertos das psicopatologias é buscarmos, no poder do Espírito Santo, a transformação da própria vida, na semelhança de Deus em Cristo Jesus.
 Jesus nos ensina a ser despreconceituosos Em Jesus a verdade tem músculos, cor e pele. Cristo é a verdade.
Apesar disso, não vemos nele a intolerância de alguns cuja fria e desalmada ortodoxia é mais uma espada afiada do que a expressão do zelo e do temor do Senhor. Jesus é a pessoa mais aberta que já fez história na Terra. Ele é aberto, sem no entanto ser um liberal sem fronteiras. Nele não vemos pré-compreensões a respeito das pessoas, apesar de conhecer de antemão o que é a natureza humana.
Nele não encontramos sintomas de preconceitos ou de pré-julgamentos. Seu dedo nunca é levantado antes de a hipocrisia manifestar-se. Sua voz nunca se ergue antes de a incoerência pretender passar por coerência. Seu juízo nunca vem, senão depois de a injustiça mascarar-se de retidão.
 Jesus nos ensina a viver nas fronteiras do amor e da santidade, mas nunca nas do moralismo e do preconceito. Para demonstrar isso ele come com pecadores, toca os intocáveis e alienados cerimonial e socialmente falando, visita a terra dos imundos porqueiros e usa porcos como agentes de misericórdia. Porcos eram animais imundos e impuros para os judeus. Mas Jesus vence o preconceito e os usa como agentes de misericórdia, como ponte de libertação. Senta à mesa com um homem cuja fama é a de ser um sofisticado ladrão, e é capaz de aceitar no seu grupo de discipulado um ex- revolucionário engajado - Simão, do partido esquerdista dos zelotes, cujo engajamento fora tão forte que seu nome mantém o vínculo com a ideologia que defendera. Jesus não leva em conta os preconceitos distorcidos contra os samaritanos, e tanto convive com eles quanto ilustra o amor fraternal através de um fictício personagem de Samaria.
Era também capaz de não só visitar os reacionários políticos religiosos de extrema-direita mas inclusive comer com eles.
Ele nem mesmo se esquivou de visitar e fazer o bem a alguém da casa do chefe local das forças de ocupação da superpotência que dominava o seu povo. E mais ainda: foi capaz de identificar fé naqueles que foram considerados pela ortodoxia pragmática como inveterados perdidos.
Entretanto, uma das provas mais fortes de que não havia espaço para preconceitos é o fato de que, nele, a mulher - então espoliada e minimizada - ganha dignidade e vê desaparecer o seu humilhante estigma de pessoa de segunda categoria. Ele a considerou extremamente útil e apta para fazer parte de sua equipe de evangelização.
Não a julgou indigna de colocar as mãos sobre a sua cabeça para ungi-lo meigamente, nem de tocá-lo suave, reverente e docemente, a fim de lhe evidenciar sua imensa gratidão.
 Jesus também vence as barreiras das maledicências e falatórios maliciosos, não fugindo às mulheres, mas tratando-as com dignidade e transparência, mesmo em lugar solitário. A malícia procede do coração sujo, não do ambiente solitário. Cabe porém ao discípulo ter todo o cuidado de abster-se de toda a aparência do mal, sem no entanto ser um preconceituoso.
No seu rol de amizades íntimas as mulheres também encontraram, espaço e dignidade. Ele não só conversa longamente com elas, como fazia refeições e aceitava hospedagem em sua casa.
Se aprendermos com Jesus, deixaremos de ser preconceituosos e estigmatizantes. Formaremos opinião definida sobre as coisas e as situações, mas nunca a priori. Não nos dirigiremos às pessoas já fechados e psicologicamente enclausurados. Não há tensão entre essa posição e a radicalidade do Reino de Deus. Devemos entender que existe um grandioso abismo entre a radicalidade e o radicalismo, entre a liberdade e o liberalismo, tanto quanto há entre zelo e fanatismo.
 Jesus nos ensina a ser pessoas livres dos legalismos religiosos Estranhamente, Jesus é o cumprimento das Sagradas Escrituras, sem no entanto ser o cumprimento dos modelos religiosos dos seus dias. Nem sempre a religião tem algo a ver com a Palavra de Deus. E isto também diz respeito, não raramente, ao próprio Cristianismo histórico e institucional.
 A religião tende a ser o melhor conduto para o esclerosamento de qualquer idéia. Na maioria das vezes ela trabalha mais com tabus do que com a legítima revelação de Deus em sua palavra. O legalismo religioso é o mais forte empecilho ao caminhar do Reino de Deus na direção do novo.
Deus trabalha no sentido não da novidade, mas do novo eterno: um novo povo, com novos homens, que possuem um novo coração, vivem a realidade de um novo mandamento, sob uma nova lei, com um novo e eterno mediador, embalados por uma nova esperança, buscando uma nova cidade, onde se tem um novo nome e onde tudo é novo.
 Jesus ensina que o velho pano e o velho odre do legalismo religioso não poderiam suportar a alegria e a realidade da era nova. As novas expressões do Reino de Deus não se conciliavam com as estruturas de castas de uma religião caduca. Era preciso uma nova estrutura e uma nova mentalidade - a mentalidade do Reino de Deus.
Devemos ter em mente que este ensino de Jesus é tão dinâmico e imutável quanto qualquer outro dos absolutos estabelecidos por ele na sua Palavra.
Mas infelizmente isso não tem sido levado a sério. Na maioria das vezes, a igreja institucional evangélica se vê esquecida de que é possível cair na mesma armadilha do farisaísmo judaico. Nesse caso a Palavra de Deus se volta para a igreja-instituição, a fim de julgá-la tanto quanto julgou o judaísmo.
Tenhamos pois em mente o seguinte: O compromisso de Deus é com a Igreja que Cristo instituiu como expressão central e orgânica do seu Reino na História presente, e não com a igreja que os homens instituíram para funcionar como seu feudo religioso e instrumento dos seus caprichos.
A promessa de Jesus que a sua Igreja seria invencível tem se cumprido e cumprir-se-á sempre. Tenhamos todavia em mente que centenas de igrejas - instituições religiosas - sucumbiram à própria história na sua marcha inexorável na direção do fim.
 Por isso mesmo a Igreja deve ter senso crítico para avaliar se seus odres culturais, sociais, metodológicos, estruturais e doutrinais estão compatíveis com o vinho (conteúdo) do Reino de Deus. É nessa tensão bendita que todo discípulo deve viver e manifestar sua fé no Senhor.
 Jesus patenteou as idéias acima expressas na maneira como enfrentou as controvérsias promovidas pelo legalismo da instituição religiosa judaica. Se ele admitia comer sem lavar as mãos, foi por ter verificado que tal costume carecia de base bíblica. O jejum também não era, na vida de Jesus, um ato mecânico e ritualístico. Tinha seu tempo e sua hora.
Refutou a teologia da inviolabilidade desalmada do sábado, ao expor que não fora instruído como castrante, frio e irrevogável capricho divino. Pelo contrário, ele foi estabelecido para benefício do homem, nunca para prejuízo.
Os modismos da aparência religiosa patrocinados pelo tipo de indumentária, corte de cabelo e fisionomia tatuada pela palidez religiosa também foram repudiados por Jesus.
E ele vai mais além ainda, quando questiona o modus operandi do processo de disciplina do crente faltoso na religião em seus dias.
 Ninguém repudiou mais o legalismo do que Jesus. Ele tinha um compromisso único com a Palavra de Deus, e onde quer que a tradição tomasse a força da Palavra, ou a substituísse, ou fosse transformada em regra inviolável que esmagasse as pessoas e as expressões de humildade, do amor, da singeleza e da criatividade santa e reverente, ele a repudiava.
O que Jesus propõe é uma espécie de tradição dinâmica, tanto sóbria quanto imaginativa, plena de vida e amor; uma tradição com portas de entrada e saída, que se ancora na Rocha mas anda no compasso da Vida.
É com essa compreensão religiosa que o discípulo deve viver. O legalismo faz apagar o Espírito tanto quanto o liberalismo e o ceticismo.
"Onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade.
 Jesus nos ensina a não ter esquemas pré-fabricados de vida A agenda não é senhora da vida de Jesus, nem ele é um ser sem programa. Seu existir humano está entre a criatividade e a disciplina dos hábitos. O fato é o seguinte: a vida de Jesus é dotada de disciplina e de costumes sem que, por isso, se deixe aprisionar por algum esquema ou programa absoluto.
A prova disso é que ele acolhia a todos os que o buscavam, sem todavia expor-se desnecessariamente às investidas populares. Ele agia dessa forma sem ser indisciplinado, mas criativo e espontâneo. Cuidava dos acontecimentos à medida que eles vinham, concentrando-se inteiramente em um de cada vez.
 Jesus cultivava costumes: celebrava a Páscoa, freqüentava a sinagoga e ensinava sistematicamente.
Seu mais forte hábito, porém era o de manter-se aberto à dinâmica da vontade do Pai. Era, por exemplo, capaz de parar uma preleção para atender às crianças, ou deter seu ensino para curar uma velhinha. Contrariou as próprias intenções anteriores, a fim de atender a uma mãe aflita.
Deteve a passeata evangelística de Jericó para ouvir um mendigo cego à beira do caminho.
Atrasou sua importante visita à casa de Jairo para socorrer uma mulher que sofria de uma menstruação crônica, e que se curou pela fé nele.
Seu modo de falar também não era produzido: podia variar da dureza à candura.
Sua hora de almoço nem sempre era observada; tampouco o tempo convencional de sono.
A noite e o dia eram usados por ele. Era capaz de passar uma noite inteira especialmente concentrado em algum motivo de oração. Nada na vida o dominava.
Seu compromisso com o Pai e com seu Reino é que traçavam sua agenda.
 A ausência de esquemas pré-fabricados evidencia-se claramente pela singeleza e a liberdade com que evangelizava. Sua abordagem evangelística variava de pessoa para pessoa e de situação para situação. Não possuía regrinhas sobre como compartilhar o Reino de Deus em quatro minutos e meio.
Jamais desrespeitaria a individualidade de cada ser humano com um programa único de evangelização, nem com a frase evangelística do ano. Tinha uma frase evangelística para cada pessoa e para cada contexto.
Em certo casamento, ocupou-se em realizar um milagre pertinente à ocasião.
Conversando com um teólogo, usou uma linguagem metafórica capaz de aguçar-lhe os sentidos e a curiosidade da mente.
Diante de um poço e de uma alma com sede de afeto, de atenção de verdade, de orientação e de Deus, referiu-se à água da vida.
Parado em frente a um enfermo crônico, dispôs-se a oferecer cura.
Ao se deparar com pessoas famintas, não só as alimentou como usou o Pão como metáfora adequada à verdade que desejava transmitir.
Imagine agora um Jesus inoportuno, que se propusesse a multiplicar pães num casamento, transformasse a água em vinho no deserto, perguntasse a Nicodemos se gostaria de ser curado; e pior ainda, que pedisse de beber ao homem que há 38 anos não conseguia pular na água no tempo próprio; ou que lhe perguntasse: "Você quer nascer de novo?"
Podemos até ouvir o paralítico respondendo: "Moço, eu não consigo pular na água e o senhor me pede de beber?"
Ou: "Eu não agüento mais esta vida e o senhor me propõe vivê-la outra vez?"
Se somos capazes de imaginar tantas cenas inoportunas, então podemos sentir o quanto as frases estereotipadas nos chavões evangélicos são muitas vezes inconvenientes.
 Jesus não tinha nenhum projeto, tal como: 5 passos para a prosperidade.
Ele dizia: "Segue-me". E é nesse seguir que se resume a vida melhor.
A compreensão de que a vida do discípulo não deve prender-se a esquemas pré-fabricados não significa, no entanto, que sejamos indisciplinados, mas pessoas abertas e criativas na maneira de viver.
Devemos fazer planos, traçar programas, possuir agendas, respeitar horários e desenvolver hábitos, mas nenhum desses fatos deve sobrepujar o costume de nos deixarmos guiar constantemente pelo Espírito e pela fé que atua pelo amor.
 Jesus nos ensina a aceitar a perseguição decorrente da pregação do Reino de Deus. Desde que o Reino de Deus é a contracultura em relação à presente ordem de coisas, então torna-se lógico que o discípulo de Jesus espere ser perseguido. Tal perseguição independe do sistema político em que ele ou a igreja estejam imersos. Na realidade, depende mais da qualidade da igreja e do discípulo do que do sistema.
Todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos. O receber comendas e benesses não são qualificações específicas desse ou daquele sistema político, mas um sintoma do tipo de pactos e convênios da igreja. Onde quer que o discípulo seja de fato discípulo e a igreja se mostre conforme o ideal bíblico, a perseguição se manifestará.
"Ai de vós, quando todos vos louvarem! Porque assim procederam seus pais com os falsos profetas".
 A perseguição dirigida ao discípulo é feita do mesmo modo como a que teve por alvo o Senhor Jesus. O discípulo não está acima do seu Mestre. A murmuração pode ser a ele dirigida; ou é possível que façam troça dele, ridicularizando-o.
Calúnias podem ser levantadas contra ele, e suas palavras serão muitas vezes distorcidas Provavelmente ele será vítima de algumas entrevistas mal intencionadas.
Material de acusação será procurado independente dos meios.
E até quem sabe a força física será usada para tentar detê-lo.
 O discípulo, no entanto, não deve nem mesmo admirar-se das fontes de onde surgirão muitas dessas perseguições. Podem ser conhecidos de infância, religiosos legalistas e sem amor, a família possuída de um sentimento de superproteção ou de incredulidade, talvez ciúme e inveja espiritual ou ainda uma perseguição oficial do Estado tirânico.
 Ao contrário do que se pensa, Jesus ensina o discípulo a reagir com bom senso e coragem diante de tais situações. Em princípio, bom senso e coragem parecem virtudes auto-excludentes, mas não o são. Bom senso sem coragem é timidez; coragem sem bom senso é estupidez. Jesus usou o bom senso para se defender.
Fez isto, no entanto, vivendo a tensão de prosseguir a sua missão sem, contudo, alhear-se à prudência.
Ele manifesta assim o seu bom senso de várias maneiras: esconde-se; some no meio da multidão; abandona a beira de um barranco; anda incógnito; evita lugares perigosos; impede os inimigos de conhecer seu paradeiro; e, na sua última estada em Jerusalém, mantém-se reservado, evitando aparecer em público.
 Mas não é apenas bom senso o que Jesus evidencia diante da perseguição. Também a sua coragem fica patenteada: os caprichos dos seus familiares são confrontados; as entrevistas com segundas intenções recebem respostas adequadas; a perseguição oficial do Estado obtém resposta própria, e seu caminho em direção a Jerusalém não é modificado.
 A partir do momento em que coloca a cruz na mira dos seus olhos, a marcha de Jesus só tem um rumo: para a frente.
 Se formos bons aprendizes de Jesus, certamente seremos firmes em nossas posições, sem, no entanto, esquecermos a prudência.
Aprenderemos também a não nos admirar com a perseguição.
 O mundo tem apenas duas reações básicas ante a genuína pregação do Reino de Deus: arrependimento sincero ou perseguição declarada.
Ninguém consegue manter-se indiferente diante do inequívoco anúncio do Reino de Deus e das claras explicitações de seus objetivos e implicações.

 Jesus nos ensina a ser pessoas de oração Cristo faz da vida uma oração. Não apenas a oração passa a ser a chave do dia e a tranca da noite, mas se transforma no próprio ato de viver.
Jesus ensina que as mãos oram quando servem em amor, e que a vida é uma prece dramática e coreografada pelas atitudes que se transformam em ação positiva em favor dos interesses do Reino de Deus. No entanto, não apenas o existir é uma oração, como deve se intensificar na forma e nas expressões cotidianas do corpo que se ajoelha na presença de Deus, numa hora específica, quando a alma, o corpo e o espírito balbuciam as orações e súplicas diante do Pai. A este respeito diz-nos a Escritura que Jesus orava sistematicamente.
Quando se via premido pelos múltiplos afazeres do dia e da semana, convidava os discípulos para um tempo de descanso e oração.
Tal projeto não excluía, porém, a possibilidade de uma interrupção pelos clamores e aflições de uma multidão doída e faminta, que ansiava pelas próprias mãos pródigas de Jesus. Assim, o tempo de oração podia ser interrompido, mas nunca o objetivo de estar diante de Deus.
Após atender às carências humanas, ele retornava ao ponto inicial, ao objetivo maior do dia, ou seja, estar na sua presença, sozinho, em oração. O local não era necessariamente importante, desde que oferecesse a tranqüilidade necessária. Podia ser qualquer monte em volta do mar da Galiléia, ou o solitário e silencioso Hermom, sobre a Cesaréia de Filipe. Mesmo a aridez de um deserto foi para Jesus um fértil lugar de oração.
E ele chega a enfatizar o fato de que a solidão dos lugares acentua ainda mais o sentimento da presença de Deus. Não importava que fosse deserto ou jardim; o importante era orar, pois o que Deus faz florescer no coração pode brotar em qualquer lugar, desde que se esteja orando.
 Todavia, ele não orava sempre sozinho. Havia momentos em que convocava amigos especiais para compartilhar um tempo de oração.
Nestes encontros a glória foi manifestada, mas também o choro e a angústia.
Para Jesus, toda hora é hora de oração. As madrugadas ouviram sua voz diante do Pai, e na escuridão sua presença clareava a noite pelo fulgor que de sua face procedia. Também ao pôr-do-sol sua voz se erguia em oração. Uma grande decisão e uma opção definitiva eram motivos mais que suficientes para que uma noite inteira fosse gasta em súplicas. Dependendo da ocasião, Jesus podia dedicar-se a uma longa oração ou proferir uma rápida súplica objetiva.
A coreografia do seu corpo durante a prece compunha-se de gestos humildes: prostrava-se em terra. Ao intensificar-se a agonia, intensificava-se também o seu clamor.
Presentemente há duas maneiras bem definidas de se entender a oração: há os que a vêem como um ritual devocional com o qual se deve começar bem o dia. É como levantar com o pé direito. Para tais pessoas, não importa se alguém esteja morrendo naquele mesmo instante à espera delas; para elas o essencial é não deixar de orar no tempo marcado. Pensam que Deus se compraz num tempo de oração que rouba de alguém um alívio. Este é um ponto de vista legalista. Por outro lado, há os que não oram, e na sua luta contra o legalismo da oração se deixam levar por uma espécie de antinominianismo devocional. Elas simplesmente não oram.
Com Jesus, no entanto, aprendemos que o discípulo deve segui-lo ao lugar de oração. O seu convite - Segue-me - inclui também os momentos diários de prece.
Sem oração, o discípulo é ativista, nunca discípulo. E o que retiramos do exemplo de Jesus é que, evitando qualquer legalismo, não nos deixemos enlaçar pelo descompromisso com a oração.
 O discípulo não pode orar menos que seu Mestre, e com ele deve aprender a socorrer as pessoas, ainda que interrompendo um tempo de prece, para imediatamente retornar a ele.
Tomando cuidado para não se cair no ativismo do serviço altruísta sem que se tenha tempo para estar a sós com Deus, deve-se ter em mente que a qualidade das ações é determinada pela qualidade do tempo que se investe sinceramente em oração.
 Jesus nos ensina a viver na alegria da descoberta do Reino de Deus O Reino de Deus é a maior descoberta - ou revelação - que um ser humano pode ter na vida. Tal vislumbre consegue gerar felicidade sem promover futilidade e brincadeira.
Ele existe na possiblidade de nos fazer chorar com os que choram sem que isto nos torne infelizes.
Faz-nos capazes de uma felicidade séria.
 Quando alguém de fato se apropria da grande maravilha que significa entrar no Reino de Deus, então tal percepção imerge o homem nas misteriosas águas do segredo e da revelação da Verdade. Através desta descoberta, vive-se a alegria simples das crianças e a certeza de um recomeço consciente sob a convicção do perdão de Deus: algo como nascer de novo.
A sensação que se apodera do coração que entra no Reino é como aquela que pervade o coração do filho que se julgava deserdado e vem a descobrir que a ele pertence a herança do amor do Pai. A euforia que domina essa alma é aquela que a pessoa considerada de maior sorte na vida jamais experimentou. É como passar de miserável a rico, gratuita e repentinamente. Os movimentos e os desejos que se manifestam na alma são equivalentes àqueles que fazem as pessoas se embalarem na reverente e familiar dança da felicidade e do reencontro.
Nessa entrada no Reino surge na alma o mesmo alívio que acomete o coração dos que foram libertos do rigor despótico de um tirano conquistador.
Vive-se nessa descoberta como aqueles que são recém-casados, em plenas bodas, no usufruto da terna lua-de-mel. A chegada do Reino de Deus para uma vida é mais significativa do que a alegria que vem após a dor do parto, vencida pelo alívio do nascimento do almejado filho. A alegria da salvação faz com que a pessoa já nem se lembre mais da dor do passado. Com o Reino nasce a esperança.
 Ao olhar em volta, noto que falta na vida e nas expressões de existência do povo de Deus esta alegria que nasce da alma como conseqüência de se ter recebido a revelação do Reino. De um lado há uma religião de oba-oba e de descompromisso; do outro, um funesto e insípido cristianismo.
Mas onde está nosso primeiro amor? Onde perdemos a alegria da Salvação? Quem nos desprendeu da órbita da alegria enquanto girávamos em volta do Sol da justiça? Onde esquecemos que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo?
 Neste modesto e pequeno trabalho tenho em mente o desejo de desafiar a mim mesmo na direção dos ideais aqui expostos. Quero aprender a viver este fascinante projeto de vida. Penso seriamente que, depois de descobrirmos para que estilo de vida Jesus nos chama, estaremos prontos a perguntar a nós mesmos: No meu contexto de vida, com família e responsabilidade variadas, perante pessoas e instituições, que tipo de vida Jesus viveria e, através do seu exemplo, o que me ensina a fazer?
 Creio que, se tivermos em mente os referenciais de vida que Jesus propôs, teremos condições de contextualizar a vida de Jesus na nossa própria existência, assim como a nossa vida no existir humano de Jesus. Só neste caso poderemos nos incluir entre os todos que ele convida a segui-lo:
 "E dizia a todos: Se alguém [qualquer um] quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz, e siga-me."

Apêndice I

Uma Ponte no Tempo
Terminamos "O Mais Fascinante Projeto de Vida" perguntando o que faríamos, na nossa própria existência, com aqueles princípios de vida ensinados e vivenciados por Jesus. No entanto, para que consigamos ter êxito nesse empreendimento, precisamos desenvolver imensamente o nosso bom senso. Aliás, é hora de o colocarmos em prática, já que ele é um dos princípios fortemente enfatizados neste nosso trabalho.
O bom senso nos livrará dos exageros. Isso porque nossa tendência natural nos conduz a exacerbações: ou julgamos o estilo de vida de Jesus desinstalado demais para que nos vejamos capazes de o assumir, ou literalizamos e absolutizamos cada situação, fazendo aquilo que ele disse a uma pessoa - num certo momento específico e concreto - uma palavra a ser praticada por qualquer um em qualquer contexto. E de todas essas posições extremadas surgem problemas.
No primeiro caso, torna-se o discipulado uma proposta utópica e inobservável.
No segundo, corre-se o risco de se colocar sobre as pessoas um fardo que nem nós nem nossos pais puderam suportar. Pior ainda: cria-se a possibilidade de passarem a existir pessoas tão frustradas que se deixem conduzir para práticas patológicas ou autodestrutivas. Os exemplos são tantos que julgamos desnecessário mencioná-los.
Uma vez levantada a sua preocupação para evitar os exageros e exercitar o bom senso, tentemos direcionar nossa atenção para algumas questões que têm que ser pensadas especificamente. São as seguintes:
1. Se Jesus houvesse contado com 50 anos para desenvolver seu ministério terrestre, teria corrido tanto quanto correu?
2. Se Jesus tivesse esposa e filhos, ter-se-ia ausentado de casa tanto tempo quanto se ausentou na maior parte do seu ministério?
3. Não tendo sido Jesus casado, há, apesar disso, em sua vida, algum indício de como um homem deve tratar a esposa? Ou melhor: a maneira como Jesus tratava por exemplo Maria, irmã de Lázaro e Marta, me ensina algo sobre como devo tratar minha esposa?
4. O fato de Jesus não ter tido casa própria significa que os seus engajados discípulos não possam ter cada qual a sua vida?
5. Se o Mestre estivesse vivendo seu ministério hoje, teria preocupação com o pagamento do seu imposto de renda, bem como com questões relacionadas aos encargos sociais da sua missão?
Penso que as respostas a essas perguntas não são difíceis de ser dadas.
Torna-se claro, à luz do bom senso, que se Jesus estivesse vivendo entre nós hoje, e dispondo de mais tempo, seu ritmo seria dinâmico, porém mais lento.
Se fosse casado sua esposa se quedaria assentada aos seus pés para ouvir a Palavra e permaneceria ao seu lado para longas conversas e palestras.
Se o Reino não exigisse dele uma concentração em três anos de ministério, o que o impossibilitava de qualquer fixação, certamente ele teria uma residência fixa para a qual voltar após as jornadas do Reino.
Se também sua missão estivesse se dando hoje, num mundo onde há rígidas leis empregatícias e forte fiscalização nessa área, não há dúvidas de que os missionários de Jesus teriam os seus direitos em dia. Quando ele paga impostos, deixa isso claro.
Nossa proposta, neste despretensioso trabalho, além das explicitadas no curso do mesmo, é desafiar os leitores a se exercitarem na tarefa de contextualizar os princípios dos Evangelhos na própria vida.
Aliás, a lição que eles nos dão é exatamente esta. Isto porque temos quatro Evangelhos, e cada um deles se dirigia a um público específico, numa cultura específica: Mateus destinava-se aos judeus de Antioquia; Marcos, aos fiéis em Roma; Lucas, aos homens de pensamento grego; e João aos cristãos de Éfeso e da Ásia. Por isso os Evangelhos funcionam como modelos hermenêuticos, insistindo, por sua própria natureza e composição, que nós também narremos de novo a mesma história em nosso contexto do século XXI, bem como busquemos vivenciar seus princípios dentro das nossas realidades - semelhantes ou correspondentes.
Devo ainda dizer que a esse respeito não desejamos apresentar respostas ou fazer sugestões amplas e minuciosas. Nosso objetivo é suscitar dúvida em relação à maneira como você tem lido o Evangelho.
Aliás, somente quando ficamos desconfiados da maneira simplista e despreocupada como temos lido sobre Jesus é que estamos caminhando na direção de encontrar o modo certo de entender e assimilar a vida e a mensagem de Cristo.
A visão que nos impeliu a escrever este livro foi a de que, por seu intermédio, discussões salutares e construtivas poderiam vir a ser desenvolvidas.
Minha sincera expectativa é a de que "O Mais Fascinante Projeto de Vida" tenha produzido ebulições no seu coração, e que as dúvidas e questões por ele levantadas possam ser eliminadas mediante honestas discussões e uma ávida leitura do material sugerido.
 Não tenho nenhuma dúvida de que se você se dispuser a seguir esse fascinante projeto de vida a sua existência será uma aventura de fé, amor e realizações, e uma nova geração de seres humanos redescobrirá em Jesus de Nazaré - mediante o compromisso que você assumir com ele - o Caminho, a Verdade e a Vida.
Que o Espírito Santo construa uma ponte no tempo entre o Jesus e a história de vida de cada irmão e cada irmã.

Apêndice II

Metodologia: Criatividade e Fixidez de Princípios
Em várias ocasiões, no "Mais Fascinante Projeto de Vida", aludimos à criatividade e à necessidade de haver - em meio ao exercício da imaginação - uma preocupação séria com a fixidez dos princípios bíblicos. Tentamos a partir dessa dialética criar uma tensão sadia no "modus operandi" da evangelização.
Isto porque somente nesta tensão é que se encontra o equilíbrio necessário ao bom andamento da tarefa evangelizadora da Igreja. Quando se polariza qualquer destas perspectivas, corre-se perigo.
Ao se optar pela absolutização da criatividade anda-se na vereda escura e lodacenta da promiscuidade metodológica e corre-se o risco de se permitir que o Evangelho e a evangelização se tornem tênues realidades no conteúdo e na forma do nosso discurso religioso.
Por outro lado, quando se fica aferrado aos métodos bíblicos sem saber distingui-los dos elementos culturais e políticos do século I e de outros momentos históricos, incorre-se no erro de absolutizar não o princípio, mas a cultura de um século, estratificando-se irremovivelmente tradições e modelos que precisariam ser repensados, a bem da dinâmica da evangelização e do progresso - sempre contextual - do Reino de Deus.
Esta preocupação com o engessamento da mensagem da Igreja de Cristo pelos métodos sacralizados e pelas culturas santificadas deve fazer parte da nossa reflexão em todos os momentos da história.
Isso porque não estamos isentos da possibilidade de que esses invólucros se tornem sufocantes para a Palavra. Pouca gente percebe isso melhor do que Dietrich Bonhoeffer:
Somos de opinião de que se o próprio Jesus, e tão-somente Jesus com a Palavra, estivesse em nosso meio na pregação, seria outro o grupo de pessoas a escutá-la e outro a rejeitá-la. Isto não significa que a pregação da Igreja tenha deixado de ser a Palavra de Deus; no entanto, quanto som estranho, quantas leis humanas duras; quantas esperanças falsas e falsos consolos turvam ainda a cristalina mensagem de Jesus, dificultando a decisão autêntica. A culpa não deve ser procurada exclusivamente nos outros, quando julgam dura e difícil a pregação - mesmo que esta pretenda ser nada senão pregação de Cristo -, por estar carregada de fórmulas e conceitos estranhos. É errado afirmar que todas as palavras de crítica à pregação constituem por si rejeição a Cristo, anticristianismo.
Concluindo esse raciocínio sobre o que obstaculiza o caminho de muitos, Bonhoeffer diz: Não é propriamente da Palavra de Cristo que querem esquivar-se; mas é que eles entre eles e Cristo há tantas coisas humanas, toda a institucionalidade, muita doutrinação.
Tornamo-nos empecilho para a Palavra de Jesus, apegando-nos demasiadamente a determinadas formulações, a uma pregação por demais estereotipada conforme a época, local, estrutura social, pregando quem sabe em termos dogmáticos, mas alheios à realidade da vida, repetindo sempre certos conceitos bíblicos, relegando, porém, ao esquecimento palavras importantes, pregando opiniões e convicções pessoais e muito pouco a Jesus Cristo.
O Kerigma * não variará jamais A mensagem de que Deus se fez gente e morreu vicariamente na cruz é insubstituível.
A ressurreição histórica e palpável dentre os mortos também tem que ser afirmada como ponto fundamental da nossa fé, contra todo sofisma ou ceticismo.
Todavia, devemos saber que evangelizar é anunciar a mensagem de salvação sobre a vida, a morte e ressurreição de Jesus, fazendo isso dentro de um conjunto de realidades que a tornem compreensível. Para que tornemos a mensagem do Evangelho compreensível teremos que entender as seguintes realidades:
1. É necessário que a linguagem seja adequada ao momento histórico. Palavras mudam de sentido e conotação. Entram e saem de uso, são dinâmicas. Nascem e morrem com as gerações. Cada geração se comunica com novos tipos de frases e novas palavras. O Evangelho tem que ser anunciado dentro desse conjunto de realidades.
2. É importante compreender que metáforas melhor se adaptam a cada grupo de indivíduos. Isto porque a alma humana sempre encontra sua melhor metáfora em algo fora de si. Jesus e os apóstolos jamais subestimaram o poder existencializável da metáfora.
A samaritana tinha sede.
Nicodemos precisava nascer de novo.
O povo faminto necessitava do Pão da Vida.
Os discípulos que tendo olhos não viam, careciam de ver um cego ser curado em duas etapas para entender que a eles ainda faltava uma maior clareza na visão espiritual.
Os homens da Galiléia compreenderiam melhor sua missão se fossem comparados a pescadores.
Os enlutados entendiam o forte significado da ressurreição.
As "donas-de-casa" compreendiam muito bem a alegria de se achar uma dracma fortuitamente.
E os agricultores sabiam o que significava semear em solo não preparado.
E nós, no século XXI, diante de homens criados no asfalto, entre pequenos canteiros de remotas plantas e grande edifícios, atordoados pelas poluições auditiva, visual e respiratória, a que compararemos as realidades íntimas e existenciais dos nossos contemporâneos? Que metáforas usaremos, a fim de ajudá-los a compreender melhor a imutável mensagem do Evangelho?
3. É preciso descobrir o ponto de tensão de cada ser humano. Todas as pessoas têm uma zona de conflito psicológica e existencial: a de Zaqueu era o dinheiro. Só depois de haver arrependimento naquela área é que se evidenciava a salvação.
A zona de conflito do jovem rico era a cobiça. É o mandamento omitido, mas é também a questão para qual ele não tem resposta.
O ponto de tensão da samaritana era a questão sexual.
O carcereiro de Filipos vivia o dilema de ser carcereiro frio e, ao mesmo tempo, ser afetuoso marido e pai. Isso gerava tensão e conflito. Seu fracasso seria o fim.
A área turbulenta de Paulo era, como no caso do jovem rico, a cobiça (Rm.7:7,8).
Também as sociedades têm seus pontos de tensão e nevralgia.
Em Roma era a perversão.
Em Éfeso, a idolatria.
Atenas tinha na filosofia seu ponto de conflito.
A Inglaterra dos dias de Wesley não podia ouvir a mensagem do Evangelho alienada da questão da escravatura e sem denúncia àquela situação.
É plano de Deus que cada um de nós conheça a realidade concreta e ministre a ela de modo pertinente.
No Brasil de hoje não se pode contextualizar legitimamente o Evangelho esquecendo-se de que milhões de seres humanos sofrem de doenças emocionais, uma legião de casamentos está se desfazendo e há um outro tanto que já sucumbiu irremissivelmente ante a indiferença.
Também não se pode deixar de pensar em centenas de pessoas que sofrem ataques espirituais malignos e dos inúmeros que passam fome e estão desempregados ou subempregados: 75% da população vive em situação de marginalidade relativa, 43% estão condenados a sobreviver com apenas um salário mínimo, 40% dos brasileiros vivem, trabalham e dormem com fome crônica. O quadro se amplia quando se sabe que dez milhões são deficientes mentais, 8 milhões atacados de esquistossomose, 6 milhões têm malária, 650 mil são tuberculosos e 25 mil leprosos  (O Estado de São Paulo, 06/02/78 página 3).
Veja que os dados estão com alguns anos de desatualização. Hoje, a miséria é intensamente superior. E ainda não se pode esquecer de que são feitos 4 milhões de abortos por ano no país e que a maioria das pessoas envolvidas na situação vive a realidade de um latejante e continuado sentimento de culpa.
Há tanta coisa a ser dita sobre o que a criatividade pode engendrar a fim de tornar o evangelho pertinente à realidade das pessoas, que preferimos deixar isso para um próximo livro. No entanto, devemos ter em mente que a imaginação tem toda a liberdade para criar dentro do espaço definido pelo conteúdo salvífico do Kerigma e dos princípios fundamentais do Evangelho: arrependimento, fé, obediência e vida comunitária.
Como já dissemos no Apêndice I, não é intenção - nem no corpo do livro nem nesses complementos - dar respostas feitas, mas apenas suscitar questões que possam ser aprofundadas em discussões posteriores.
Como não sou um escritor profissional e nem um perito em teologia, evangelização e eclesiologia, atrevo-me apenas a fazer perguntas.
Penso que muitos daqueles que leram as questões suscitadas pelo "Mais Fascinante Projeto de Vida" e seus dois apêndices têm melhores condições intelectuais e instrumentais do que eu para aprofundar e equacionar os problemas criados.
Quero também deixar claro que não estou me oferecendo como referencial prático e nacional de como viver os desafios expostos e propostos neste trabalho. É verdade, entretanto, que a maior ambição da minha vida é fazer jus ao signo do discipulado.
Amo seu modelo existencial, psicológico, político e comportamental. Amo até mesmo as controvérsias às quais se está sujeito vivendo esse projeto de vida.
Ser discípulo é ser feliz em meio aos perigos da jornada. É ser o divisor das uniões ilícitas, o desestabilizador dos pactos espúrios, o catalisador dos segregados, o amante fraterno dos repudiados.
Ser discípulo é somente como se pode ser gente, sem que seja de uma casta superior. A superioridade do discípulo é ser servo.
A liberdade do discípulo é ser escravo da lei da liberdade, e a sua escravidão é ser livre para obedecer ao amor e à santidade.
Eu quero ser discípulo!

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* Docetismo (do grego δοκέω [dokeō], "para parecer") é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja primitiva, que defendia que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente. Não existiam docetas enquanto seita ou religião específica, mas como uma corrente de pensamento que atravessou diversos estratos da Igreja.
Esta doutrina é refutada no Evangelho de São João, no primeiro capítulo, onde se afirma que "o Verbo se fez carne". Autores cristãos posteriores, como Inácio de Antioquia e Ireneu de Lião deram os contributos teológicos mais importantes para a erradicação deste pensamento. (Nota da revisora).
* Kerigma - do grego. Nas Escrituras, significa a soma de todas as verdades. A palavra kerigma está traduzida por pregação. (Nota da revisora).

Pastor Caio Fabio D'Araújo Filho.